O Humor Árabe

Extraído de

LAUAND, L. J Provérbios e Educação Moral - a filosofia de Tomás de Aquino e a pedagogia árabe do mathal), São Paulo, Mandruvá (HotTopos) , 1997 e LAUAND, L. J. (org.) e Oriente & Ocidente X- O Bom-Humor Bíblico e outros estudos, São Paulo, DLO-FFLCHUSP / Edix, 1995.

Característica do humor árabe (e do humor semítico em geral) é o apreço pela engenhosidade e pela astúcia: é uma constante nos provérbios, nos contos, nas anedotas.

Assim, por exemplo, o escritor Abu Nuwas - em seu relacionamento com o califa Harun Ar-Rashid - é uma das personificações da sagacidade, celebrada em diversos relatos, como o seguinte: Harun Ar-Rashid, passeando um dia com Abu Nuwas, pediu-lhe uma ilustração do antigo provérbio "A desculpa foi pior do que a falta", que lhe parecia demasiadamente abstrato. Abu Nuwas aproximou-se do califa com um sorrisinho malicioso e deu-lhe um maroto beliscão no braço. O califa, indignado, interpelou-o: "Não me lembro, ó insensato, de ter-te permitido tais liberdades". Ao que Abu Nuwas imediatamente respondeu: "Perdão, Majestade, não vi que era o senhor; pensei que fosse a rainha".

Na verdade, para os árabes, qualquer episódio que encerre argúcia, consubstancia-se em fórmula de uso comum, como é o caso, por exemplo, do provérbio libanês: "Eu não tenho medo do alif, mas do que vem depois!".

A sentença (ou sua primeira metade) aplica-se a inúmeras situações em que alguém se recusa a começar algo por temor do desenvolvimento que aquilo possa vir a ter. É resposta negativa ante certas insistências: "Vamos lá, um copinho só...", ou "Por que você não aceita, só até aparecer outro, ser síndico de nosso prédio?" etc. O provérbio originou-se no caso de um garoto, recém-enviado à escola, que se recusava terminantemente a aprender a ler, resistindo-se a pronunciar ou escrever o alif (a primeira letra do alfabeto). O professor comunica o fato ao pai que, após infrutíferas repreensões, dirige-se docemente ao menino: "Meu filho, por que essa teimosia? O alif não vai te fazer nenhum mal, por que você tem medo do alif?". E o garoto respondeu: "Eu não tenho medo do alif, eu tenho medo é do que vem depois...".

Continuemos com o humor dos provérbios. De acordo com as necessidades de sua sociedade, o árabe fulmina com divertidos provérbios os abusos que dificultam a convivência:

 

- Há quanto tempo...! - Claro, você não vai à mesquita, e eu não vou ao cabaré...

-Ôpa! Não é porque eu disse 'Enterre-me' que você vai pegar a pá" [Frha, 146].

(É bem conhecido o espírito de acolhimento oriental e suas desconcertantes - sobretudo para padrões europeus nórdicos - manifestações de carinho (por palavras ou por gestos) em fórmulas que, para o ocidental, parecem exageradas. O Alcorão prescreve, por exemplo (IV, 86), retribuir uma saudação com outra mais intensa ou, pelo menos, não inferior (naturalmente, a reação em cadeia deflagrada por um simples "Bom dia" pode durar uma eternidade). Nesse sentido, Cristo, que tão bem sabe valorizar a hospitalidade e as formas humanas de acolhimento (cfr. p. ex. Lc 7, 44 e ss.), tem que recomendar aos discípulos enviados em missão: "A ninguém saudeis pelo caminho" (Lc 10, 4). É um problema de aproveitamento do tempo em uma missão urgente! Neste campo das saudações e das manifestações de carinho, o refinado Oriente está a anos-luz de distância do primário Ocidente... Por exemplo, o ocidental, ante uma visita que se despede, diz (quando muito): "Vê se aparece!" (com o que - consciente ou inconscientemente - parece afirmar: Nós somos pessoas muito importantes, interessantes, bonitas ... e autorizamos você - que não é nada disso... -, a vir ver-nos, pois, nós, além do mais, somos também generosos etc.). Já o oriental despede-se da visita dizendo: Ismah lana nashufak! - "Permita que nós o vejamos" (você é o importante, etc. etc...). Evidentemente, o exagero das formas (que, em todo caso, no Oriente, não é mero formalismo) requer o necessário corretivo do bom humor dos provérbios. Assim, uma das fórmulas mais fortes de manifestar o carinho é Taqbarny, "Enterre-me!" (com o que se diz: eu quero que você sobreviva a mim, eu não saberia viver sem você etc.) é temperada por esse mathal).

Ainda contra os abusos da hospitalidade, este outro provérbio:

 

-Ôpa! Tá certo que dissemos 'A casa é sua!', mas não precisa trancar a porta e levar a chave".

E para prevenir contra os que se aproveitam interesseiramente da amizade:

 

Meu amigo, meus olhos, luz da minha vida! mas... longe de minha bolsa! [Frha, 2124].

A formulação divertida dos provérbios, além do mais, auxilia a memória. É freqüente, nesse sentido, que provérbios resumam - em uma frase - longas histórias ou anedotas e façam a ligação com outros tipos de amthal: provérbio - fábula; provérbio - parábola etc. Assim, um popularíssimo provérbio em todo o mundo árabe é, na verdade, o desfecho de uma fábula do Kalila e Dimna:

O corvo quis imitar o passo (elegante) da perdiz e perdeu o seu.

Falávamos da defesa contra abusos de hospitalidade. Ainda dentre os provérbios ligados a episódios, encontramos contra os abusos do juramento:

"Mão na massa, Leila!"

(O Oriente, o juramento. A cada passo, por qualquer ninharia, jura-se. Jura-se pelas barbas do profeta, pelo amor dos meus filhinhos, pela luz dos olhos, pelo sol e pela lua, pela manhã e pela noite, pelo Alcorão e pela Bíblia... O árabe, a emoção, o pranto. O exagero. Os acalorados juramentos não deixam de ser suspeitos, mas como defender-se da chantagem emocional que, por vezes, eles veiculam? Como não perder a lucidez e detectar a eventual falta de credibilidade de que podem ser portadores? A distância crítica, para manter a objetividade, tem uma grande defesa: a do bom humor, avalizado por este antigo provérbio que, no original, contém apenas duas palavras. Trata-se do proverbial episódio do beduíno que roubara um saco de farinha. Ante o juiz, foi-lhe exigido um juramento de inocência. Sem pestanejar, ele jurou, pensando consigo mesmo: "Leila, minha mulher, pode, perfeitamente, estar fazendo pastéis, agora, com aquela farinha. Farinha roubada, Deus é testemunha, eu não tenho").

E contra os abusos dos importunos:

(#76) "Cospe a pedrinha, Mansur!" [Frha, 959].

(Frase que se tornou proverbial. Mansur era um "boca-suja", sacristão do bispo, o qual tentava, em vão, corrigir-lhe a linguagem, permeada constantemente de palavrões. Até que lhe ocorreu a eficiente sugestão de que Mansur mantivesse uma pedrinha na boca para ajudá-lo a lembrar-se de evitar expressões indecorosas. Num dia de intenso calor, o bispo percorria a estrada - a pé, acompanhado por Mansur - fazendo suas visitas pastorais, quando ouviu uma velha que chamava por ele, insistentemente, do alto de um morro. Quando acabou de subir a penosa encosta, a velha explicou que o chamara para abençoar sua ninhada de pintinhos... O bispo, enquanto passava o lenço na testa, voltou-se para Mansur - também ele furioso... -, dizendo: "Tudo bem, Mansur, pode cuspir a pedrinha!").

O humor árabe criou também o popularíssimo personagem Jiha, que concentra em si, dezenas de anedotas e casos divertidos (algo semelhante a nosso Pedro Malazarte ou ao aluno "Joãozinho", personagem de piadas referentes a escola). Como tipo de variadas situações cômicas, Jiha não deixa de apresentar uma certa ambigüidade: se muitas vezes é o tipo do tolo, egoísta e importuno é, freqüentemente também, o esperto.

É o caso dos seguintes relatos:

Cobiçando as belas sandálias novas de Jiha, os companheiros de caminho, ao avistarem uma grande árvore, desafiam-no: "Vamos ver se você é capaz de escalar essa árvore". Jiha descalça-se e, pondo as sandálias no bolso, diz-lhes: "Levo comigo as sandálias para o caso de encontrar um atalho lá em cima e poder continuar caminhando".

É hora da prece na mesquita, os fiéis esperam ansiosamente o imam, que não vem. Alguns sugerem que um dos assistentes se encarregue do serviço divino e a escolha recai sobre Jiha.

Jiha, desprevenido, recorre a todas as desculpas, roga pelo amor de Allah que o deixem em paz, mas em vão: é tal a insistência que Jiha sobe ao minbar, e dirige-se à comunidade:

- Irmãos, que posso ensinar-vos hoje?

- Não sabemos, não temos conhecimentos!, respondem os fiéis em uníssono.

- Então devo pregar a animais? Nesse caso, ide embora, instruí-vos e da próxima vez ouvireis o imam.

E desceu do minbar e foi-se embora. Os fiéis deliberam e combinam: da próxima vez, quando ele perguntar, alguns responderão negativamente, enquanto outros responderão que sim, que sabem o tema escolhido para a pregação de Jiha.

E, de fato, o imam falta mais uma vez e, de novo, forçam Jiha a subir ao minbar.

- Sabeis o que vou ensinar-vos hoje?

Conforme o combinado, alguns dizem "sim!", enquanto outros dizem "não!".

Jiha, responde sem hesitar:

- Bem, já que muitos de vós o sabeis, instruí os ignorantes e todos ficarão em igualdade de condições...

E só voltou à mesquita nos dias em que viu entrar o imam.

Sendo a engenhosidade um dos temas semíticos prediletos, a tradição árabe também está repleta de histórias e anedotas sobre falsos profetas. A astúcia do falso profeta (ou a de quem o desmascara...) é uma das milenares constantes do humor árabe.

Um homem proclamou-se profeta. Chama-o à sua presença o Califa Al Ma`mun:

- Que sinal fazes?

- Qualquer coisa que o Califa deseje, é só pedir.

- Muito bem. Tens aqui um cadeado. Abre-o!

O "profeta", indignado, sai-se com esta:

- Mas, senhor, eu sou um profeta e não um chaveiro!

O mesmo Al Ma`mun interroga outro que se dizia profeta, sobre seus sinais.

- Conheço o que vai no espírito do homem. Por exemplo, o Califa, agora, está pensando que eu sou um impostor.

- Sim, acertaste. Mas não adivinhaste que, mesmo assim, vais para o cárcere.

Alguns dias depois, o profeta é chamado à presença do califa.

- Tiveste alguma revelação?

- Não!

- E por que não, se és profeta?

- Anjos não entram em prisões...

Al Ma`mun o pôs em liberdade, sob a condição de abandonar o ofício. Tempos depois, foi reconduzido à presença do califa, acusado de continuar ludibriando os ingênuos.

- Quero que produzas, aqui e agora, sem trapaças, um melão!

- Dá-me três dias, rogou o farsante.

- Nem três dias, nem três minutos: há de ser imediatamente!

- És injusto para comigo: Deus precisou de seis dias para criar o Céu e a terra e de três meses para fazer melões; tu, simples mortal, não podes esperar três dias...

E lá o mandaram de novo embora, entre gostosas risadas...

Um que dizia ser profeta e chamar-se Abraão, "o amigo de Deus", foi interpelado, na corte, pelo califa Al-Mutassym:

- Que sinal vais fazer para convencer-nos de que és profeta? Abraão fazia sinais e milagres: precipitava-se no fogo, mas as chamas tornavam-se, para ele, refrigério. Moisés também: seu cajado, arremessado ao solo, transformou-se em serpente; quando bateu no mar, as águas separaram-se... Os milagres de Jesus, como ressuscitar mortos, não são menos convincentes. Qual preferes imitar?

- O milagre da ressurreição é, para mim, o mais fácil. Vou decapitar Ibn Abu Dawd e ressuscito-o em seguida.

Ibn Abu Dawd, que estava presente, gritou:

- Quanto a mim, dispenso as provas! Creio firmemente que este homem é um autêntico profeta...

Outro candidato a profeta, alardeava sua capacidade de fazer milagres, como o de fazer vir a si qualquer árvore que chamasse.

- Então, ordena a esta palmeira que venha a ti.

- Vem! Vem!, ordenou, em vão, repetidas vezes o embusteiro.

Perguntam-lhe: - E agora?

- Os verdadeiros profetas não são orgulhosos nem cabeça dura. Se a árvore não vem a mim, vou eu a ela.

jeanlaua@usp.br